quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Conversando com o espelho

- Doutor, eu tenho um problema.
- Qual?
- Existem dois “eus” aqui dentro: um “eu” bondoso, justo, paciente, amável, altruísta e amigável; e um “eu” egoísta, compulsivo, luxurioso, feroz, que não respeita acordos e não tem limites.
- Ok, entendi. Mas por que você vê isso como um problema?
- Porque é incompatível ser assim e alcançar a sabedoria.
- Alcançar a sabedoria? Esse é o seu objetivo de vida?
- Sim. Na verdade, viver bem o caminho da busca pela sabedoria é o meu objetivo de vida – ainda não tenho certeza se é possível alcançá-la, mas tentarei chegar o mais perto possível.
- Tá certo. Nesse caso, voltemos aos seus dois “eus”. Há quanto tempo eles estão aí?
- Provavelmente, a vida toda. Mas eu tenho consciência da coexistência deles há uns 3 anos.
- Um bom tempo... suponho que as coisas vêm dando certo então. Mas, como funciona isso? Eles têm consciência diversa ou é a mesma agindo de formas diferentes?
- Boa pergunta… assim, eles coexistem e têm a mesma consciência. Ela é una, é minha. Mas eles é que dominam as minhas ações e a minha forma de pensar.
- Tá, mas eles ficam brigando o tempo todo ou cada um “tem a sua vez”?
- Algumas vezes eles brigam sim, mas em regra um “assume o comando” enquanto o outro "hiberna".
- Tô entendendo… como é quando eles brigam?
- Quando um está no comando e ocorre alguma situação que remete ao outro, o outro acorda e tenta “assumir as rédeas”. Daí há o conflito, pois, teoricamente, “tava na vez do outro”. Geralmente ocorre quando me distraio ou “fico no automático”.
- Entendo… mas o que você acha que tem? Uma dupla personalidade? Alguma doença?
- Não sei, oras! Afinal, o médico aqui é você! Foi pra isso que eu vim aqui: para que você me ajudasse com esse meu problema.
- Mas você realmente tem um problema?
- Claro que tenho. Acabei de te contar… ou você acha que é só um descontrole? Você por acaso sente a mesma coisa que eu?
- Claro que sinto. Provavelmente não na mesma proporção, mas todos nós temos dois “eus” internos (algumas pessoas têm até mais do que dois). A questão é que em algumas pessoas (como no seu caso), esse conflito é mais latente. Eu não costumo alimentar essa divisão. Eu tento ao máximo torná-los um só. Você deveria tentar fazer o mesmo.
- Então você sugere que, em vez de eliminar um dos dois, eu deveria misturá-los e torná-los um só?
- Sim, o nome disso é equilíbrio.
- Ok, deixa eu ver se entendi. Então você também tem dois “eus” internos (um bom e um mau), mas eles não lutam aí dentro, ao contrário, eles se uniram e formaram um eu só, nem bom, nem mau. É isso mesmo?
- Bem, mais ou menos. Sabe como é, né? Eu sou humano. E ser humano é isso: não somos nem totalmente bons, nem totalmente maus.
- Você acha isso mesmo?
- Acho sim. Por que? Você pensa diferente?
- Sim. Eu acho que podemos ser completamente bons ou maus. Se for para não ser nem bom, nem mau, eu prefiro continuar com os meus dois “eus” antagônicos. Assim, pelo menos em boa parte do meu dia, eu serei completamente bom e virtuoso, mesmo que às vezes eu libere a fera que existe aqui dentro.
- Não sei se fui claro o suficiente, mas tentarei explicar melhor. Eu vejo assim: esse “eu” virtuoso é o que há de mais elevado na gente, nosso aspecto mais divino (mais puro, se preferir), e é movido por sentimentos elevados e positivos; já o “eu” que você chama de fera é o nosso lado mais animalesco e é movido pelos desejos mais baixos que temos. Assim, a nossa consciência, o meio termo que eu disse, é o nosso lado neutro, humano. Nem divino, nem animal. Simplesmente humano.
- Humm… agora entendi. Mas, assim, você não acha que devemos ser menos humanos (ou neutros, como você definiu) e ser mais “divinos”, mais puros?
- Na verdade, eu não sei. Sinceramente, estou satisfeito com a minha humanidade plena. Nem divino, nem animal, apenas humano. Acho bonita a ideia de se tornar mais puro e querer alcançar a sabedoria, mas o que desejo mesmo é ser cada vez mais humano.
- É doutor, talvez não seja eu que precise de ajuda então.

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